As formas de poder dentro de ensaio sobre a lucidez – Jose Saramago
Ensaio
Sobre a Lucidez,
publicado pela primeira vez em 2004, é sobre a capital de um país que, no dia
das eleições, grande parte da população resolve não sair para votar, por conta
de uma chuva. Quando o desespero já se fazia latente pela cúpula do governo, as
pessoas saem todas para as sedes eleitorais, mas o resultado surpreende: a
grande maioria dos votos é em branco. Sem a validação do resultado, outra
eleição é marcada para a semana seguinte. De novo, outra surpresa: 83% da
população vota em branco. E agora? O que fazer? Como o resultado é democrático,
mas impede a manutenção de um modelo de democracia, o governo e os membros dos
partidos se veem sem saída e resolvem decretar um estado de sítio na cidade,
afim de que a população “desgovernada” tome consciência do erro que é sabotar a
democracia que “tanto se lutou para obter”. O que acontece? Nada.
O que a obra tem de mais
violento é a capacidade de mostrar como todas as formas de poder, sejam elas no
nível individual, do estado e até dos veículos de informação, formam uma rede
de relações em que tudo funciona coordenadamente, como uma máquina moderna que
reproduz os primeiros objetos, mas que, qualquer pequena avaria, deixa de
funcionar e estabelece outro movimento. Enquanto os jornais afirmam que sem
polícia vai haver mortes, tragédias, suicídios, desespero, o governo espera,
torce e manipula para que tal aconteça com o intuito de se mostrar útil. O que
fica evidente é: a democracia, como vivemos, é um regime em que uns precisam
necessariamente de outros e que, quando não necessitam, o regime cai.
Ora, mas isso parece ser o contrário do que
rege o conceito democrático, em que cada um deve participar com sua parcela de
obrigação – direitos e deveres – para consigo e com os demais. Destaco, como
exemplo, o trecho em que os ministérios obrigam que a coleta de lixo seja
interrompida por uma “greve”, mas no mesmo instante as donas-de-casa se põem a
limpar as ruas e, posteriormente, os próprios funcionários da limpeza ajudam,
só que agora como civis.
Até que, em meio a tudo isso, se ouve um disparo: uma bomba no
metrô, mortes, velórios e enterros e… Nada. Como tal pode acontecer? –
perguntam-se presidente, primeiro-ministro, ministro do interior, entre outros.
Nada, nem um discurso é feito, a população enterra seus mortos e vive. Cito:
“Os nossos mortos, tão comum, de tão rotineiro consumo nas
arengas patrióticas, teria sido aqui tomada à letra, isto é, sendo estes
mortos, todos eles, pertença nossa, a nenhum deveremos considerar
exclusivamente nosso. (…) Aqui, cada um com o seu desgosto e todos com a mesma
pena”.
É essa a conclusão, claro que dialética, a
que chega Saramago:
se nada é de um, tudo é de todos, embora o sentimento seja ao mesmo tempo
individual e coletivo. Essa é a forma que ele encontra para desmontar um regime
caduco, que insiste em se reproduzir parasitariamente pelos sistemas da nossa
sociedade.
Enquanto isso, do outro lado, o que faz o governo? Procura um
vilão, um culpado, um subversivo, uma horda de violentos necessitados. E o que
encontra? Novamente, nada. Apenas uma mulher que nunca havia cegado, seu marido
oftalmologista, um cão que lambe suas lágrimas e um comissário que ao invés da
cegueira branca é tomado, como que de súbito, por uma lucidez branca como a
paz.
Revisão textual: Patrícia Araújo