sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

Resenha Literária

 


Lavoura Arcaica – Safra de profusas vivências

Por Neuceli Silva

 

“Eu pensava muitas vezes que eu não devia pensar, que nessa história de pensar eu tinha já o meu contento, me estrebuchando na santa bruxaria do infinito[...]” (Raduan Nassar)

Assim pensa o personagem André da obra Lavoura Arcaica, do autor Raduan Nassar, nascido no interior de São Paulo, numa cidade de nome Pindorama. Ele escreveu o romance no ano de 1975, em plena ditadura militar. Com narrador em primeira pessoa dividindo sua função com um eu-lírico, uma vez que a narrativa apresenta uma entoação e um teor poético, a escrita pode causar surpresa ao leitor mais desavisado.

A maestria no estilo da produção literária do autor rendeu-lhe o Prêmio Camões de Literatura – o prêmio mais importante da língua portuguesa e que contempla os países falantes dessa língua ─ no ano de 2016.

Lavoura Arcaica chama a atenção pelo assunto, considerado tabu por muitas pessoas – o incesto. O amor mais que fraternal entre irmãos de uma família tradicional marcada pela rigidez das convenções patriarcais. Os personagens presentes na obra são, na grande maioria, pertencentes ao mesmo núcleo familiar em que a figura do pai impõe o respeito e o ordenamento de tudo quanto deve ser seguido pelos seus constituintes. O que à primeira vista pode remeter o leitor à história do filho pródigo, ao final do romance, constata que o sentido é o oposto, que a alegria da volta desencadeia ações calamitosas.

Trata-se de um livro que encanta e assusta ao mesmo tempo, a começar pela linguagem figurada em que o leitor deve estar alerta às suas significações. Esse mesmo leitor, logo de início, depara-se com uma pontuação pouco convencional que marca extensos fluxos de consciência do personagem André. numa narrativa poética, que inebria, fazendo com que o a história se torne um mistério a ser desvendado a cada capítulo.

Outra característica da obra são os flashbacks. É dessa forma, que vamos compreendendo a narrativa não linear, recheada de figuras de linguagens: metáforas, antíteses, paradoxos, personificações, e nos remete ao poético em toda a trajetória da trama, como por exemplo no trecho “[...] e uma chaleira de ferro, soturna, chocando, dia e noite sob a chapa[...]”. A harmoniosa figura nos remete a um lugar no passado do interior, lembrando um fogão de lenha e o sossego da vida sertaneja.

A leitura de Lavoura Arcaica é um exercício e um desafio sedutor que num primeiro momento, assusta ao leitor despreparado e, que aos poucos vai fisgando de uma maneira a enganchar o anzol da vontade de descobrir os mistérios que envolvem a história até que a última página seja alcançada.

A obra não é para qualquer púbico. Entretanto é uma aventura deliciosa para aquele leitor especial, autônomo, capaz de mergulhar na história e caminhar com o personagem André na sua jornada angustiante até o seu desfecho. O que fará com que o expectador, com certeza, passe algumas noites em claro, refletindo sobre a vida daquela família cristã que foi costurando e remendando o seu destino trágico no cotidiano do silêncio e da concessão.

 

Ficha técnica

Obra: Lavoura Arcaica

Data da primeira publicação1975

Autor: Raduan Nassar

Edição: 3ª edição - 1989

Editora: José Olympio

Gênero: Romance

Número de páginas:196