A Revista Subtextos traz14 deliciosos contos para serem apreciados por leitores apaioxonados pelo gênero nesse tempo de quarentena. Dentre esses textos, está a publicação do meu conto, Sibipiruna.
Desejo que leiam, não só o meu, todos. Apreciem!
Escritor Brasileiro
📖Projeto para divulgar livros e autores nacionais contemporâneos
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Sibipiruna
Neuceli Maria da Silva Candido
A
tarde quente de janeiro era a prova de que os verões na região não mudaram,
mesmo com as especulações de que o aquecimento global elevara as temperaturas
no planeta, naquele lugar, o termômetro deveria marcar o mesmo grau centígrado desde
o início dos tempos. Pelo menos era a sensação dos filhos quando se despediram
da mãe, deixando-a na varanda da frente observando o horizonte, onde dali a
pouco o sol se esconderia.
─
Eu queria tanto que ela viesse com a gente. Não entendo porque tem que ficar
aqui sozinha nesse lugar desolado. ─ Foi o que disse Alice, a filha caçula de
três irmãos que desde que entrou para a faculdade foi morar com o irmão, João, a
cunhada Silvia e os dois sobrinhos na capital do estado. Tinham ainda outro
irmão, Henrique, mais velho, que há oito anos estava na Alemanha, lecionando em
uma universidade. Desde que fora para lá, casara-se e não voltou mais.
Comunicava-se com a família por Skype e, como a mãe não tinha internet e nem
telefone, os irmãos eram os mensageiros entre os dois.
─
Você sabe o quanto já tentamos, Alice. Ela se recusa a deixar a casa e o sítio.
No fundo, acredita que nosso pai possa voltar e que precisa estar aqui para
recebê-lo.
─
Já faz 20 anos, João. Ele não vai voltar. Onde quer que tenha ido, foi para não
voltar. A mãe precisa compreender, de uma vez por todas, que ele nos abandonou.
Às vezes, eu a odeio por não querer mudar as coisas. Essa casa, essas lembranças,
tudo precisa ser esquecido...Acredita que ainda diz “boa noite” a ele? Ouvi
essa noite.
─
Parem com isso! ─ Silvia chamou a atenção dos dois meninos que começavam uma
briga por algum motivo banal.
─
Deixe os garotos se entenderem sozinhos, Silvia... ─ João, sorrindo, sempre
amenizava a situação.
Na
casa, a mãe sentou-se na cadeira da varanda e ficou observando o carro que
sumia ao longe, deixando uma espessa nuvem de poeira por onde passava. O calor
estava infernal e uma pequena brisa nas folhas da sibipiruna amenizava a
temperatura. No chão um tapete de flores amarelas enfeitava a entrada da casa.
Aquela
árvore fazia parte da vida da família. Nascera do nada, como dizia dona Ana.
Fora providência divina porque o lugar escolhido para nascer, fazia com que sua
sombra cobrisse exatamente a frente da casa onde as crianças brincavam. E,
volta e meia subiam em seus galhos aproveitando as aventuras da infância. Quem
não gostava disso era seu Aníbal, o pai dos meninos. Era um homem rude, estava
sempre longe de casa, chegava bêbado e brigando com a mulher e os filhos. As
crianças quando o viam, saiam correndo e procuravam se esconder, ao máximo, da
presença do pai. Porém, às vezes, entretinham-se nas brincadeiras e não
percebiam a aproximação dele a não ser quando ouviam os gritos:
─ Cambada de preguiçoso! Vão procura o que fazê...ou
arrebento o lombo do`cês. ─ Era um deus nos acuda e todos corriam para perto da
mãe em busca de proteção, enquanto o pai continuava vociferando ─ Vou cortá
essa maldita árvore e aí quero ver gente vagabundeando em cima dela.
Absorta nas lembranças,
dona Ana não percebera a noite chegando. Era sua rotina, sentar-se na varanda,
olhando o sol se por e, sentindo o frescor da brisa na sibipiruna, esperando o
calor amenizar com a chegada da noite para, então, ir dormir. Os filhos, quando
foram embora, um a um, insistiram para que ela vendesse o sítio e fosse para a
cidade, viver com eles. Mas decidiu que não iria. Não poderia...ali estava sua
vida. Ali plantara seus sonhos e enterrara seus sofrimentos. Vivia naquele
rincão esquecido por Deus desde o dia do seu casamento. Desde o dia do início
do seu sofrimento. Aníbal, o marido não lhe poupou um dia de desgosto. E, com a
vinda dos filhos, as coisas só pioraram. E, então, ela, além de se proteger,
temia pela prole.
Nesse entardecer,
enquanto observava o horizonte e a sibipiruna, veio-lhe à mente uma estranha noite
de verão, há exatamente vinte anos:
“O calor não dera refresco mesmo com a chegada da noite. As crianças
tinham ido dormir, dona Ana deixou-lhes a janela aberta para que o frescor da
noite pudesse entrar. Foi para seu quarto e a voz engasgada de seu Aníbal
reclamava o tempo todo. A lua estava clara e iluminava parte da casa por onde
seus raios conseguiam se esgueirar. A janela aberta emoldurava o seu clarão. Ao
longe podia-se ouvir um trovão sinalizando que o tempo mudaria. Na madrugada,
seu Aníbal se levantou e foi para o quintal. Ele sempre fazia isso nas noites
em que o calor deixava a cama insuportável.
‘Dona Ana vira o marido se levantar, mas cansada como
estava, entrou numa espécie de cochilo. Passado não mais que uma hora, acordou
com o barulho da chuva e os respingos que entravam pela janela. Levantou-se
para fechar a janela das crianças e quando saiu do quarto apurou os ouvidos e
percebeu outro som. Achou estranho. Eram pancadas fortes. Foi até a sala e
abriu a porta. Visualizou o marido, debaixo da chuva, com o machado em punho
cortando a sibipiruna. Ficou perplexa com a cena. Por que tanta maldade?!
Quando o dia amanheceu, dona Ana estava na cozinha passando
o café para que as crianças tomassem antes de ir para a escola. Após chamá-los
e enquanto se arrumavam ouviram a mãe chamando pelo pai no quintal, para que
viesse tomar o café antes de ir para a roça. Repetia isso todas as manhãs.
Os dois meninos maiores iam para a escola montados num
cavalo alazão bem manso e a menorzinha, Alice, então com três anos, ficava em
companhia da mãe. As crianças não viam o pai porque ele saía para a roça antes
mesmo que terminassem de vestir a roupa e nesse dia não foi diferente.
Joáo, ao adentrar a cozinha, exclamou:
─ Que fogaréu! ─ referindo ao fogo aceso no fogão de
lenha.─ O que está queimando?
─ Coisas que não prestam mais. ─ respondeu a mãe.
─ O cheiro é ruim. ─ completou o menino.
─ Cheiro de coisa velha e sem serventia.
Ao saírem se
depararam com os galhos da sibipiruna pelo chão. João voltou correndo chamando
pela mãe e a encontrou à porta fazendo-lhe sinal que ficasse quieto e fosse
para a escola. Com lágrimas nos olhos e choro entalado na garganta ele
obedeceu.
Na volta da escola perceberam, ao longe, que algo estava
diferente. A casa cheia de gente e o carro da polícia ao pé do que sobrara da
árvore. A mãe veio ao encontro deles, com os olhos vermelhos de choro
dizendo-lhes que o pai desaparecera. Já haviam procurado por todos os cantos e
até agora, nada de encontrar. Não encontraram nem rastros porque a chuva forte
da noite os apagara. Não sabia o que acontecera, mas as roupas do pai também
tinham sumido.
Foi um dia inteiro de buscas, mas quando o povo da cidade
soube que as roupas também tinham sumido, chegaram à conclusão de que o homem
partira por vontade própria e desistiram da procura. Durante uma semana, algumas
pessoas ainda vieram visitar a família e ver como estavam, mas com o passar dos
dias, as visitas foram rareando até se findarem por completo. Dona Ana, agora,
era pai e mãe da família, tomou a frente na roça e na casa. Trabalhou muito,
passou por necessidades, mas os filhos não. Fez o que pode. “Até vê-los crescer
e cuidar de suas próprias vidas, sem precisar dela.”
Nesse momento, um
sorriso de satisfação brotou dos lábios da velha senhora. A noite chegara de
vez, levantou-se foi até a árvore que sobrevivera aos maus tratos sofridos
naquela noite e se erguera muito mais frondosa que antes, apanhou algumas
flores do galho mais baixo e foi para dentro. Fechou a porta, encaminhou-se para
o quarto e pela janela aberta viu a lua esplendorosa. Ouviu um trovão fundo e
pensou: “Lá vem chuva, e das fortes.”
Sentou-se na cama com a flor ao lado.
─ Boa noite, Aníbal.
Está com muito calor?
Levantou-se, foi até a
gaveta da cômoda e pegou um martelo em meio às roupas, afastou a cama,
abaixou-se, acariciou uma das tábuas do assoalho em que o prego parecia meio
solto. Com o auxílio do martelo desprendeu dois pregos e levantou a tábua.
Debaixo, num buraco, um saco amarrado pela boca. Retirou o saco e o abriu.
Dentro, cinzas. Bastantes cinzas. Mergulhou as mãos no material e sorriu:
─ Com calor, Aníbal?
Nossa árvore enviou flores para comemorar seu aniversário de morte.
Colocou o cacho de
flores amarelas dentro do saco, fechou-o e o guardou novamente. Voltou a tábua
ao lugar, bateu o prego com o martelo e foi dormir.
Lá fora, a chuva mansa
batia no telhado em ritmo tranquilo e caía forte no chão, de onde exalava um
gostoso cheiro de terra molhada, contribuindo para um sono tranquilo daquela
velha e cansada senhora.