domingo, 29 de março de 2020

CONTO PULBLICADO




A Revista Subtextos traz14 deliciosos contos para serem apreciados por leitores apaioxonados pelo gênero nesse tempo de quarentena. Dentre esses textos, está a publicação do meu conto, Sibipiruna. 
Desejo que leiam, não só o meu, todos. Apreciem!


 Escritor Brasileiro
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Sibipiruna
 Neuceli Maria da Silva Candido
         A tarde quente de janeiro era a prova de que os verões na região não mudaram, mesmo com as especulações de que o aquecimento global elevara as temperaturas no planeta, naquele lugar, o termômetro deveria marcar o mesmo grau centígrado desde o início dos tempos. Pelo menos era a sensação dos filhos quando se despediram da mãe, deixando-a na varanda da frente observando o horizonte, onde dali a pouco o sol se esconderia.  
         ─ Eu queria tanto que ela viesse com a gente. Não entendo porque tem que ficar aqui sozinha nesse lugar desolado. ─ Foi o que disse Alice, a filha caçula de três irmãos que desde que entrou para a faculdade foi morar com o irmão, João, a cunhada Silvia e os dois sobrinhos na capital do estado. Tinham ainda outro irmão, Henrique, mais velho, que há oito anos estava na Alemanha, lecionando em uma universidade. Desde que fora para lá, casara-se e não voltou mais. Comunicava-se com a família por Skype e, como a mãe não tinha internet e nem telefone, os irmãos eram os mensageiros entre os dois.
         ─ Você sabe o quanto já tentamos, Alice. Ela se recusa a deixar a casa e o sítio. No fundo, acredita que nosso pai possa voltar e que precisa estar aqui para recebê-lo.
         ─ Já faz 20 anos, João. Ele não vai voltar. Onde quer que tenha ido, foi para não voltar. A mãe precisa compreender, de uma vez por todas, que ele nos abandonou. Às vezes, eu a odeio por não querer mudar as coisas. Essa casa, essas lembranças, tudo precisa ser esquecido...Acredita que ainda diz “boa noite” a ele? Ouvi essa noite.
         ─ Parem com isso! ─ Silvia chamou a atenção dos dois meninos que começavam uma briga por algum motivo banal.
         ─ Deixe os garotos se entenderem sozinhos, Silvia... ─ João, sorrindo, sempre amenizava a situação.
         Na casa, a mãe sentou-se na cadeira da varanda e ficou observando o carro que sumia ao longe, deixando uma espessa nuvem de poeira por onde passava. O calor estava infernal e uma pequena brisa nas folhas da sibipiruna amenizava a temperatura. No chão um tapete de flores amarelas enfeitava a entrada da casa.
         Aquela árvore fazia parte da vida da família. Nascera do nada, como dizia dona Ana. Fora providência divina porque o lugar escolhido para nascer, fazia com que sua sombra cobrisse exatamente a frente da casa onde as crianças brincavam. E, volta e meia subiam em seus galhos aproveitando as aventuras da infância. Quem não gostava disso era seu Aníbal, o pai dos meninos. Era um homem rude, estava sempre longe de casa, chegava bêbado e brigando com a mulher e os filhos. As crianças quando o viam, saiam correndo e procuravam se esconder, ao máximo, da presença do pai. Porém, às vezes, entretinham-se nas brincadeiras e não percebiam a aproximação dele a não ser quando ouviam os gritos:
─ Cambada de preguiçoso! Vão procura o que fazê...ou arrebento o lombo do`cês. ─ Era um deus nos acuda e todos corriam para perto da mãe em busca de proteção, enquanto o pai continuava vociferando ─ Vou cortá essa maldita árvore e aí quero ver gente vagabundeando em cima dela.
Absorta nas lembranças, dona Ana não percebera a noite chegando. Era sua rotina, sentar-se na varanda, olhando o sol se por e, sentindo o frescor da brisa na sibipiruna, esperando o calor amenizar com a chegada da noite para, então, ir dormir. Os filhos, quando foram embora, um a um, insistiram para que ela vendesse o sítio e fosse para a cidade, viver com eles. Mas decidiu que não iria. Não poderia...ali estava sua vida. Ali plantara seus sonhos e enterrara seus sofrimentos. Vivia naquele rincão esquecido por Deus desde o dia do seu casamento. Desde o dia do início do seu sofrimento. Aníbal, o marido não lhe poupou um dia de desgosto. E, com a vinda dos filhos, as coisas só pioraram. E, então, ela, além de se proteger, temia pela prole.
Nesse entardecer, enquanto observava o horizonte e a sibipiruna, veio-lhe à mente uma estranha noite de verão, há exatamente vinte anos:
O calor não dera refresco mesmo com a chegada da noite. As crianças tinham ido dormir, dona Ana deixou-lhes a janela aberta para que o frescor da noite pudesse entrar. Foi para seu quarto e a voz engasgada de seu Aníbal reclamava o tempo todo. A lua estava clara e iluminava parte da casa por onde seus raios conseguiam se esgueirar. A janela aberta emoldurava o seu clarão. Ao longe podia-se ouvir um trovão sinalizando que o tempo mudaria. Na madrugada, seu Aníbal se levantou e foi para o quintal. Ele sempre fazia isso nas noites em que o calor deixava a cama insuportável.
‘Dona Ana vira o marido se levantar, mas cansada como estava, entrou numa espécie de cochilo. Passado não mais que uma hora, acordou com o barulho da chuva e os respingos que entravam pela janela. Levantou-se para fechar a janela das crianças e quando saiu do quarto apurou os ouvidos e percebeu outro som. Achou estranho. Eram pancadas fortes. Foi até a sala e abriu a porta. Visualizou o marido, debaixo da chuva, com o machado em punho cortando a sibipiruna. Ficou perplexa com a cena. Por que tanta maldade?!
Quando o dia amanheceu, dona Ana estava na cozinha passando o café para que as crianças tomassem antes de ir para a escola. Após chamá-los e enquanto se arrumavam ouviram a mãe chamando pelo pai no quintal, para que viesse tomar o café antes de ir para a roça. Repetia isso todas as manhãs.
Os dois meninos maiores iam para a escola montados num cavalo alazão bem manso e a menorzinha, Alice, então com três anos, ficava em companhia da mãe. As crianças não viam o pai porque ele saía para a roça antes mesmo que terminassem de vestir a roupa e nesse dia não foi diferente.
Joáo, ao adentrar a cozinha, exclamou:
─ Que fogaréu! ─ referindo ao fogo aceso no fogão de lenha.─ O que está queimando?
─ Coisas que não prestam mais. ─ respondeu a mãe.
─ O cheiro é ruim. ─ completou o menino.
─ Cheiro de coisa velha e sem serventia.
 Ao saírem se depararam com os galhos da sibipiruna pelo chão. João voltou correndo chamando pela mãe e a encontrou à porta fazendo-lhe sinal que ficasse quieto e fosse para a escola. Com lágrimas nos olhos e choro entalado na garganta ele obedeceu. 
Na volta da escola perceberam, ao longe, que algo estava diferente. A casa cheia de gente e o carro da polícia ao pé do que sobrara da árvore. A mãe veio ao encontro deles, com os olhos vermelhos de choro dizendo-lhes que o pai desaparecera. Já haviam procurado por todos os cantos e até agora, nada de encontrar. Não encontraram nem rastros porque a chuva forte da noite os apagara. Não sabia o que acontecera, mas as roupas do pai também tinham sumido.
Foi um dia inteiro de buscas, mas quando o povo da cidade soube que as roupas também tinham sumido, chegaram à conclusão de que o homem partira por vontade própria e desistiram da procura. Durante uma semana, algumas pessoas ainda vieram visitar a família e ver como estavam, mas com o passar dos dias, as visitas foram rareando até se findarem por completo. Dona Ana, agora, era pai e mãe da família, tomou a frente na roça e na casa. Trabalhou muito, passou por necessidades, mas os filhos não. Fez o que pode. “Até vê-los crescer e cuidar de suas próprias vidas, sem precisar dela.”
Nesse momento, um sorriso de satisfação brotou dos lábios da velha senhora. A noite chegara de vez, levantou-se foi até a árvore que sobrevivera aos maus tratos sofridos naquela noite e se erguera muito mais frondosa que antes, apanhou algumas flores do galho mais baixo e foi para dentro. Fechou a porta, encaminhou-se para o quarto e pela janela aberta viu a lua esplendorosa. Ouviu um trovão fundo e pensou: “Lá vem chuva, e das fortes.”
Sentou-se na cama com a flor ao lado.
─ Boa noite, Aníbal. Está com muito calor?
Levantou-se, foi até a gaveta da cômoda e pegou um martelo em meio às roupas, afastou a cama, abaixou-se, acariciou uma das tábuas do assoalho em que o prego parecia meio solto. Com o auxílio do martelo desprendeu dois pregos e levantou a tábua. Debaixo, num buraco, um saco amarrado pela boca. Retirou o saco e o abriu. Dentro, cinzas. Bastantes cinzas. Mergulhou as mãos no material e sorriu:
─ Com calor, Aníbal? Nossa árvore enviou flores para comemorar seu aniversário de morte.
Colocou o cacho de flores amarelas dentro do saco, fechou-o e o guardou novamente. Voltou a tábua ao lugar, bateu o prego com o martelo e foi dormir.
Lá fora, a chuva mansa batia no telhado em ritmo tranquilo e caía forte no chão, de onde exalava um gostoso cheiro de terra molhada, contribuindo para um sono tranquilo daquela velha e cansada senhora.







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